O enólogo Márcio Brandelli (foto) deixou a sua marca na vitivinicultura brasileira com pouco mais de uma década de trabalho. Tudo começou com a sua saída da Don Laurindo, a vinícola da família Brandelli. Tive o privilégio de acompanhar os bastidores (conto a seguir). A Don Laurindo, situada no Vale dos Vinhedos, leva o nome do patriarca Laurindo Brandelli. Nela, Ademir, o primogênito, e os gêmeos Márcio e Magda aprenderam tudo sobre o cultivo de uvas e a elaboração de vinhos. Seu Laurindo, que faleceu há exatos seis anos, em 22 de março de 2014, aos 83 anos, autorizou o uso do seu nome para a abertura da vinícola em 1991 com uma frase simbólica: “Tudo bem, só não me façam bobagem”.
Não fizeram. Em 20 anos, a Don Laurindo fez história. Formado em enologia, Ademir Brandelli conduziu todo o trabalho inicial. Em duas décadas, transformou a vinícola em referência em vinhos finos de alta qualidade. Ademir ficou conhecido como “Dr. Tannat” por ser pioneiro no cultivo desta uva no Vale dos Vinhedos. A adega da vinícola, protegida por grades e cadeado, guarda um pouco destes vinhos de safras históricas. Até hoje, 29 anos depois da sua fundação, a Don Laurindo mantém-se como uma das principais vinícolas brasileiras.
Conto isso para dizer que, ao longo do tempo, a Don Laurindo tornou-se a vinícola do Ademir Brandelli. Márcio e Magda cresceram nela, aprenderam ali, trabalharam ali, mas com o passar dos anos, os interesses foram ficando diversos. Para resumir: Ademir seguiu uma filosofia europeia, elaborando vinhos elegantes, equilibrados, com muita fruta e pouca madeira.
Márcio Brandelli pensava diferente. Apreciava vinhos mais potentes. Um de seus mantras era que a barrica é o pulmão do vinho, tanto para tintos como para brancos. Era apaixonado por vinhos encorpados, especialmente chilenos e argentinos. Sua saída foi natural. Dos bastidores, o que vale revelar é que, apesar de difícil e sofrida como qualquer separação, o novo projeto de Márcio foi compreendido totalmente pelo seu irmão mais velho, Ademir. Tanto que a nova vinícola de Márcio e sua irmã gêmea Magda foi resultado dessa cisão.
Almaúnica - A vinícola dos sonhos
Na moderna Almaúnica, fundada em 2008, inspirada, obviamente, na vinícola chilena Almaviva, Márcio Brandelli desenvolveu o projeto da sua vida. Cuidou da uva escolhendo boas áreas de plantio próprio e produtores parceiros para lhe fornecer uvas que queria e não conseguia produzir sozinho no milionário terroir do Vale dos Vinhedos. Buscava uvas em Encruzilhada do Sul e em Quaraí. Para obter a estrutura e a alta concentração nos seus vinhos, Márcio Brandelli seguiu alguns princípios básicos da sua vinícola butique: uso de mosto-flor (o primeiro suco, conseguido quase sem espremer a uva), envelhecimento em barricas novas por no máximo três vezes e produção limitadíssima.
Sempre investiu em tecnologia, do vinhedo ao engarrafamento, sem nenhum preconceito. Se orgulhava de ter construído uma vinícola toda por gravidade, sem utilizar bombeamento em nenhuma das etapas de elaboração dos seus vinhos. Procurou as variedades certas para plantar em cada um dos seus vinhedos. Arriscava o que podia todas as safras para alcançar o ponto máximo de maturação das uvas. Quando não dava certo, simplesmente não elaborava a bebida. Repetia que a única forma de melhorar o conceito do vinho brasileiro era produzir rótulos de excelência. Defendia que isso só se faz em pequena escala.
Sua estreia foi um estrondo. Lançado em 2011, o primeiro syrah do Vale dos Vinhedos, de boa qualidade, ao estilo sul-americano, surpreendeu a todos e se espalhou como rastilho de pólvora Brasil afora. Foi a sua primeira jogada de não-marketing: sem divulgação oficial, sem propaganda, sem assessoria de imprensa, sem redes sociais, só no boca a boca.
A Almaúnica, aliás, é um caso único: conquistou milhares de fãs pelo país sem uma estratégia – evidente – de marketing tradicional. Mas, na verdade, Márcio Brandelli usou as principais ferramentas de um bom plano de marketing: produto de qualidade, divulgação focada nas pessoas certas (multiplicadores) e, atenção, a escassez. O velho dogma “quanto menor a oferta, maior a procura” sempre funciona. Isso porque as pessoas são naturalmente atraídas pelo que é raro, restrito, exclusivo e limitado. Puro marketing, mas um tanto invisível do grande público. Com essas ferramentas, a Almaúnica ganhou uma legião de seguidores, ávidos por seus lançamentos, que seguiram e seguem sendo de alta qualidade, sempre exclusivos e limitados.
Se Ademir Brandelli passou anos em contato com a produção europeia de vinhos, Márcio Brandelli mergulhou na produção de vinhos da Argentina e do Chile. Sempre que deparava com um grande vinho, especialmente os seus, ao lado das barricas (um dos seus lugares preferidos), Márcio Brandelli exclamava:
"Esse vinho é de tomar ajoelhado!"
Apesar da estrutura, complexidade e concentração, desde o início seus vinhos nunca foram pesados, excessivamente tânicos e difíceis de beber. Mérito todo para o seu conhecimento em enologia. Certa vez, ele me disse:
“O segredo é a uva, a uva. Eu só tento não estragar o que o vinhedo me deu.”
Foco na qualidade dos vinhos
Com o tempo, ele evoluiu, assim como seus vinhos. A fruta foi ganhando cada vez mais espaço em seus vinhos e a madeira, apesar de sempre estar presente, foi ficando mais sutil, atuando na sua função primordial de auxiliar no afinamento dos taninos de tintos potentes. Antenado, ele acompanhou a própria evolução dos rótulos argentinos e chilenos, que, atualmente, seguem esta linha mais elegante. Mas os seus vinhos nunca perderam o DNA de força e robustez.
Como a qualidade dos seus vinhos era prioridade número 1, sua Copa do Mundo era a Avaliação Nacional de Vinhos, aos finais de setembro de todos os anos. Era ali que ele sempre exibia as suas novas proezas e projetava seus lançamentos. Inovador, mostrou que conseguia fazer vinhos jovens, mas diferenciados, como o seu recém lançado Riesling, e se aventurou na elaboração de espumantes, igualmente de boa qualidade.
Um dos enólogos mais alegres do Vale dos Vinhedos, Márcio Bendelli, que nos deixou neste sábado triste, 21 de março de 2020, fez muitos amigos. Participou de entidades associativas, como a Aprovale. Foi sempre parceiro das iniciativas comunitárias e políticas em benefício do setor. Como herança para o mundo, deixou seus filhos Bernardo e Manuela. Como legado para o vinho, deixou sua vinícola e suas ideias. Sua esposa Denise e sua irmã Magda certamente saberão seguir com sua filosofia de vida engarrafada. Como ele mesmo dizia:
"Cada vinho é elaborado com alma e cada garrafa é única”. Para todos nós, enófilos, ficou sua Almaúnica, eternamente.
Autor: Orestes de Andrade Jr.
Presidente da ABS-RS, Jornalista e Sommelier
Parabéns pelo artigo bem escrito, sensível e informativo sobre um grande cara. Admiro o trabalho dele e o pouco que conheci como pessoa, tenho certeza que o Legado vai ser de Amor pelo Vinho, respeito à Natureza e Alegria de viver. Descanse em paz, Márcio.
Uma perda enorme para o mundo dos vinhos e para nossa sociedade. Vai fazer muita falta!