Ajuste seus hábitos para degustar esses vinhos na estação fria
Cai a temperatura e os brancos somem das prateleiras, das cartas de vinho e das adegas. Mas os verdadeiros entusiastas dessa deliciosa categoria não se intimidam pelo frio. Com alguns pequenos ajustes nos seus hábitos, o inverno também pode ser favorável aos brancos (veja a aula completa que lecionei no Bella Ciao ao final deste texto).
É natural que os pratos mais calóricos tenham apelo maior na estação fria do ano. O inverno está relacionado com um período de escassez de frutas e verduras e, com isso, direciona nossos hábitos de consumo para o maior acúmulo de calorias. É instintivo. Curiosamente, não são todos os hábitos do verão que mudam subitamente quando cai a temperatura. Sobremesas frias, como sorvete ou panna cotta, ainda são servidas nessa época do ano, por exemplo. E poucos são os que deixam de apreciar por completo comida japonesa na temporada fria. Pelo lado dos vinhos, haveria opções com o poder de nos passar ainda mais a sensação de calor se comparados aos tintos. E nem assim vemos uma procura elevada de fortificados, bebidas que possuem gradação alcoólica mais alta. Alguém vem registrando disparadas nas vendas de Jerez ou Madeira? Acho que não.
Usando os vinhos como ponto de partida na lógica de harmonização, claro que os tintos terão maior apelo no inverno. A enogastronomia recorre a eles para fazer a combinação com refeições mais calóricas, respeitando o princípio básico do equilíbrio – equivalência de peso entre o prato e o vinho. Para entender do que se trata, experimente provar uma feijoada no almoço em um dia quente enquanto beberica um Pinot Grigio, por exemplo. No primeiro gole será refrescante, mas depois da primeira garfada a bebida perderá totalmente as características.
A harmonização tem muitos elementos subjetivos. E no inverno o ponto central é a temperatura de serviço. Brancos e espumantes perdem espaço porque exigem resfriamento. Defendo que para não renunciar aos seus brancos favoritos, basta manter o ar-condicionado ligado. E sobre a dificuldade de encontrar o já mencionado equilíbrio entre os brancos e os pratos típicos de inverno, é preciso entender uma diferença básica: cor é diferente de peso. Lembre-se que nem todos os tintos são encorpados, como relatei no episódio do Bella Ciao em que debatemos os tintos que poderiam ser degustados no verão (relembre clicando aqui). Do mesmo modo, no inverno não precisamos abandonar os vinhos brancos que adoramos. Assim como existem tintos mais leves, há brancos cujo peso é maior.
Porém, a análise de provável sucesso numa harmonização precisa ir além do peso. Há outros pontos entre vinho e comida que devem ser levados em consideração. O primeiro diz respeito aos componentes, que são os elementos básicos, as sensações primárias na língua, como acidez, amargor, doçura e salgado. As texturas são igualmente relevantes. Tratam-se das percepções tácteis e térmicas em boca, percebendo o vinho na língua (se é mais áspero, compacto, fresco, leve, crocante ou cremoso). Outro fator a ser destacado é o conjunto de aromas, ou seja, as sensações complexas que exigem rigor na identificação. Identificando essas características no vinho e na comida, se parte para a combinação usando dois princípios básicos: a concordância ou a contraposição.
Um exemplo clássico de harmonização por concordância é um prato doce com um vinho igualmente doce, enquanto o contraste seria combinar um vinho doce com uma refeição salgada. Já um vinho com certa cremosidade, como o espumante, por concordância poderia ser o par perfeito para um prato cremoso, como um caldo de moranga ou mesmo um suflê de queijo. Se quisermos experimentar um contraste de texturas, sugiro provar um prato ensopado e suculento com um tinto tânico que causa secura na boca. Por fim, também podemos fazer composições com aromas. Por concordância, um vinho onde as frutas vermelhas se destacam pode muito bem ser servido com um corte de carne com geleia das mesmas frutas vermelhas. Por contraposição, escolha um prato defumado, pois vinho e comida disputarão seu olfato.
Os vinhos brancos têm componentes, texturas e aromas que nos dão muitas possibilidades para harmonizar pratos de inverno. Tábua de frios ou queijos combinarão muito bem o frescor e acidez típicos dessa categoria. Queijos cremosos ou embutidos gordurosos, como jamón ou presunto cru, vão encontrar na acidez dos brancos a contraposição ideal. Sopas e caldos de moranga, cenoura ou ervilha são excelentes combinações por textura para a cremosidade de alguns brancos. Além disso, há uma contraposição nesse campo que vale ser explorada: o choque entre a garfada em um prato quente e um gole de uma bebida fria. Se o assunto são os aromas, existem muitos pratos que oferecem relação interessante com vinhos brancos feitos de Riesling, Sauvignon Blanc, Moscato ou Torrontés, uvas sabidamente aromáticas.
Abaixo apresento uma escala de corpo (do menor para o maior) de variedades de uvas brancas facilmente encontradas no mercado. Não se trata de uma régua definitiva, e sim um exercício. A Riesling Itálico, no topo da tabela, tem corpo muito baixo, enquanto a Sémillon, no extremo oposto, é uma casta que produz vinhos encorpados. Deve-se levar em conta que qualquer decisão enológica pode colocar essas variedades para cima ou para baixo nessa escala. Um Chardonnay de Chablis, extremo norte da Borgonha, por exemplo, é leve, fresco, cítrico, fácil de beber e é a harmonização perfeita para ostras. Já a mesma casta cuja bebida passa por passagem em barrica, como os produzidos na Califórnia, vai pedir outro tipo de refeição para acompanhamento.
Eis, a seguir, alguns estilos de vinhos feitos com uvas brancas que vão bem no inverno.
Chardonnay barricado
É um estilo comum e fácil de achar. É um produto consagrado que caracteriza regiões produtoras importantes, como a Califórnia, nos Estados Unidos. Basicamente, a barrica aporta aromas e sabores de baunilha, manteiga, um toque lácteo, mas o vinho não deixa de ter acidez e frescor. Também não perderá fruta. Logo, nos bons exemplares, todos os elementos estão em equilíbrio. Uma harmonização perfeita para esse Chardonnay é sopa de capeletti, pois vai ter equivalência de peso, o volume da fruta no vinho combina com o carboidrato e os aromas mais complexos se interligam bem com o recheio, seja ele de frango, gado ou porco. Como há um toque de noz moscada, também teremos uma consonância com os aromas. Já a textura cremosa do recheio e da própria massa se tornará um par perfeito da textura untuosa do vinho, além, é claro, do choque entre frio e quente.
Viognier
A uva tem acidez moderada, corpo mais volumoso e tendência a desenvolver mais álcool. Oferece textura de cera, dá excelente volume de boca, com aromas de damasco, floral e gengibre. Outro prato com cara de inverno pode entrar aqui: polenta com molho de frango. Melhor usar galinha caipira, pois tem potência de sabor pronunciada. O uso de especiarias e ervas na polenta farão correspondência com as características da bebida e vai deixar o preparo mais aromático.
Encruzado
O berço esplêndido dessa autóctone é o Dão, em Portugal. Aqui no Brasil não temos o hábito de provar vinhos dessa variedade com frequência. A tendência é que esse estilo apresente bastante álcool e estrutura. Muitas vezes é fermentada em barrica e chega a dar a percepção até de tanino nesses vinhos, tendo em vista sua alta complexidade e longevidade. Como vinho branco, inclusive, tende a envelhecer bem. Combina com proteína mais marcante, como um porco com batatas. Outras opções podem ser ensopados com embutidos suínos. Um molho de mostarda e mel funciona igualmente bem, pois contrapõe o vinho com um preparo mais agridoce e macio.
Sémillon
É uma uva com aptidão para varietais, cortes, botrytis, passagem por madeira, vinhos doces, secos, com ou sem envelhecimento. Ou seja, é muito versátil. Não tanto quanto a Chardonnay, por exemplo, mas oferece uma gama de diferentes estilos. Sozinha, ela apresenta corpo amplo e textura untuosa, e, assim como a Viognier, vai ser interessante com tábuas de queijos pelas correspondências aromáticas.
Também há uma série de estilos regionais que podem ser explorados por causa do maior peso de seus brancos. É o caso dos Alentejanos feitos com Arinto, Roupeiro e Antão Vaz. Eles são potentes, apresentam álcool marcante e muita fruta madura. Já em Rioja, na Espanha, há o predomínio da uva Viura em bebidas encorpadas e complexas quando mais evoluídas. Na terra de grandes tintos franceses, Bordeaux, a área mais pródiga para a produção de grandes brancos é Pessac-Leognan. Os aromas são cítricos, como também apresentam toques de gengibre, maçã cozida e creme brulée.
Sobre o autor: Maurício Roloff é diretor de ensino da ABS-RS. Atua no setor vitivinícola desde 2007, com foco principal nas áreas de educação e comunicação. Atualmente, é professor das disciplinas de harmonização de vinhos da graduação tecnológica em gastronomia da Universidade do Vale do Rio dos Sinos (Unisinos). Também participa como jurado de concursos enológicos nacionais e internacionais. Como jornalista, vem fazendo a cobertura do setor há mais de dez anos, atuando em mídia impressa, no rádio e na televisão. Também desenvolve projetos de comunicação na área para empresas e entidades.
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