O vinho parece revelar muito além do terroir, com todos os fatores que o determinam, e da safra, com suas qualidades e intempéries.
“Bebe esse vinho, bebe esse vinho!”
Foi em algum dia quente de 1989, quando eu tinha 5 ou 6 anos, que me assustei com os gritos em alto e bom tom e um forte sotaque alemão. Os gritos eram acompanhados de uma cena teatral de ameaça com uma garrafa vazia. Na minha ingenuidade infantil, eu acreditava que aquele homem realmente estava brigando com o meu pai. Ele me explicou, porém, no caminho de casa, que eles eram amigos e que ele só estava tentando explicar algo de modo mais enfático. Hoje, entendo que ele tentava argumentar sobre a impossibilidade de se obrigar uma pessoa a gostar de um vinho - o seu ponto era que não havia outro modo para uma vinícola ter sucesso diferente de elaborar vinhos com rigorosos critérios de qualidade.
O alemão em questão era Christian Rudolf Mayer. Ele se mudou para Flores da Cunha nos anos 1980 com o objetivo de elaborar riesling na Serra Gaúcha com o mesmo nível de qualidade que ele já atingia no vale do Mosel (Alemanha). Tornou-se amigo de minha família pelas afinidades com meu avô, Eloy - tinham em comum a língua alemã e a paixão por vinhos. Acabou ficando mais conhecido em 1999, quando elaborou o primeiro vinho desalcoolizado da América Latina. Até pouco tempo podia ser encontrado nas prateleiras de supermercados o “eno-drink Barco Dionysos”. Uma das últimas vezes que encontrei Christian pessoalmente foi na Festa da Uva de 2002.
Naquela ocasião, eu era um jovem estudante de engenharia de alimentos, querendo aprender tudo o que pudesse sobre o mundo do vinho. Fui ao seu estande, me apresentei (não nos encontrávamos desde minha infância) e disse que gostaria de experimentar o seu “vinho não-alcoólico”. Ele fingiu não escutar o meu pedido e contou algumas histórias de meu avô, elogiou meu pai, perguntou como estava, falou dos seus negócios, dentre outras anedotas. Insisti para experimentar o tal eno-drink, então, ele foi enfático: “Eu era muito amigo do teu avô, não vou deixar tu beberes essa bebida sem graça, ele se ofenderia comigo. Tenho algo para ti aqui.” Abriu o frigobar atrás de si, e me serviu de um riesling com mais de 10 anos, com passagem por carvalho. “Esse vinho só sirvo para experts.”
As marcas da infância e o gosto pessoal
Lembrei-me dessa história enquanto montava uma aula sobre comportamento do consumidor de vinhos (assista aqui aula de "Por que gostamos dos vinhos que gostamos?"). Ao tentar compreender por que eu gosto dos vinhos que eu gosto, pensei muito sobre a minha predileção por vinhos antigos. Os meus argumentos mais técnicos sobre tal preferência giram em torno sempre da complexidade aromática, dos aromas terciários, do prazer em descobrir como aquele vinho evoluiu, etc. Porém, essa pequena história compartilhada neste texto revela algo mais profundo: é como se eu buscasse uma antiga sabedoria a ser revelada através histórias perdidas, algo que poderia ter sido perdido no cotidiano da vida, na banalidade do dia-a-dia.
O vinho parece revelar muito além do terroir, com todos os fatores que o determinam, e da safra, com suas qualidades e intempéries. O vinho revela a verdade através de sonhos, de memórias distorcidas, de falas soltas e de emoções à flor da pele. O vinho, de alguma maneira misteriosa, como um barco conduzido por Dionísio, não navega em superfícies rasas, mas mergulha em busca daquelas verdades mais profundas. Em minha paixão, me encantam aquelas histórias antigas, compreender como pode ter sido aquela safra, como foi elaborado aquele vinho, por tudo o que o mundo passou até que essa garrafa chegou até a minha taça.
Mas essa é uma tentativa de encontrar a minha verdade.
Qual é a tua verdade sobre vinhos?
Autor: Júlio César Kunz
Psicanalista, professor e diretor de ensino da ABS-RS
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