O mundo teve o privilégio de um gentleman dando a graça de sua presença por quase 80 anos e temos em quem nos inspirar como referência de conhecimento, coragem e leveza
To take something for granted é uma expressão da língua inglesa que não encontra uma perfeita tradução em português, porque assume diferentes sentidos dependendo dos seus usos. Poderíamos traduzir como algo entre “assumir que” e “não dar o devido valor”. Num relacionamento de longo tempo, por exemplo, costumamos take the person for granted, ou seja, assumimos que ela está ao nosso lado e que não precisamos fazer muito para que as coisas andem bem, até mesmo deixando de agradecer – aliás, esse é o segredo para acabarem mal. No mundo do vinho, hoje damos por certo (take for granted) que a diversidade é a grande beleza, a próxima garrafa sempre é a mais interessante e uma nova região desperta a nossa curiosidade. Contudo, nem sempre foi assim.
Até os anos 1970, o mundo do vinho era o mundo dos vinhos franceses. Era opinião corrente de que os vinhos da França eram os melhores, que ninguém poderia competir, por mais tradição ou inovação que outras regiões pudessem apresentar. Os vinhos de outros lugares do mundo poderiam ocupar no máximo o segundo lugar – o que parece acontecer ainda com os vinhos espumantes na cabeça da maioria das pessoas, sem ousar ir contra àqueles de Champagne. Tudo muda depois do famoso Julgamento de Paris (1976), evento que mostrou o quanto os vinhos californianos podiam ser competitivos e até ganhar de vinhos clássicos franceses nas opiniões de grandes críticos da época.
Não é exagero afirmar que o mundo do vinho não seria o mesmo depois de tal degustação. Apesar de alguém poder dizer que seria só uma questão de tempo para vinhos australianos e chilenos invadirem o mundo, ou que a Itália ocuparia o palco principal de Baco com seus Barolos, Brunellos, Amarones e Supertoscanos cedo ou tarde, a verdade é que sem Steven Spurrier isso só aconteceria mais tarde. O corajoso britânico tinha uma loja de vinhos em Paris e se dedicava a atender os forasteiros que não falavam inglês, não apenas para vender as suas garrafas, mas também para educá-los na complexidade de uvas, estilos e terroirs. Visionário, não somente percebendo a qualidade dos vinhos de uma região então inusitada, mas mostrando isso ao mundo.
Spurrier é uma grande referência. Tive a oportunidade de conversar com ele em Logroño (capital de La Rioja – Espanha) em 2009 (clique aqui para ler a entrevista transcrita). Foi muito gentil comigo e com os vinhos brasileiros. Aproveitei a oportunidade da conversa e o apresentei à Andreia Gentilini Milan, então gerente do projeto Wines of Brasil, que culminou na realização de um evento em São Paulo comparando espumantes do Hemisfério Sul em São Paulo. Mas toda essa grandiosidade histórica, conhecimentos técnicos e referências têm menos importância em mim que a imagem que guardo do mestre britânico caminhando despreocupadamente, com um discreto sorriso, em frente à Marques de Riscal num domingo pela manhã. O vinho ganhou muito, o mundo teve o privilégio de um gentleman dando a graça de sua presença por quase 80 anos e nós temos em quem nos inspirar como referência de conhecimento, sabedoria, coragem e leveza.
Obrigado, Steven!
Autor: OIV MSc Júlio César Kunz
Psicanalista, sommelier, mestre em vinhos na França, presidente e professor homologado da ABS-RS
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